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Duas Meninas


No fim dos anos 50 do século XIX, numa rica casa de Mata-cavalos, uma menina ardilosa – bela, mas pobre – lançava mão de seus encantos para seduzir um filho-família. Voluntariosa, constante em seus desígnios, desde cedo a menina parecia demonstrar pouco respeito pela pirâmide social do Segundo Reinado. Filha de um reles funcionário público, queria porque queria se casar com o tal filho-família, herdeiro de um proprietário de terras que chegou a deputado. Com dois olhos de ressaca e uma inteligência aguda, Capitu então arregaçou as mangas e foi à luta. Tanto fez, a desavergonhada, que terminou por casar-se com Bentinho. O fim dessa história, todos conhecemos...

Já na infância, o comportamento de Capitolina acusava a adúltera de mais tarde: “As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo.” Francês, latim, inglês, gamão, doutrina e obras de agulha: tudo era matéria às curiosidades da menina. Como Eva, tentação de Adão, Capitu não aceita a interdição do conhecimento.

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Em meados de 2015, numa rica casa do Morumbi, a adolescente Jéssica (Camila Márdila) admira uma estante cheia de livros. Enquanto folheia um deles, revelando o desejo de lê-lo, tece comentários sobre suas leituras e a decoração modernista da sala.

“Que menina inteligente”, diz Bárbara (Karine Teles), dona da casa.

“Não”, diz Jéssica, com certo tom petulante, “eu sou só curiosa”.

A menina – não nos deixemos enganar pela altivez da fala – é filha de Val (Regina Casé), empregada da casa.

Jéssica, como Capitu, parece ter pouco apreço pela pirâmide social da qual forma a base. Aspirante à arquiteta, sai de Pernambuco e vai a São Paulo para prestar a Fuvest, o mais elitista dos vestibulares. Não aspira a um casamento economicamente conveniente, como aspirava Capitu (o amor, para as moças pobres do século XIX, representava a única possibilidade de ascensão social); em tempos de self-made women, deseja vencer pelas próprias forças. Para isso, estuda, queima as pestanas. Como a voluntariosa Capitolina, possui as qualidades – tão rara em garotos como Fabinho (Michel Joelsas) ou Bentinho – da responsabilidade e constância.

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Em 1991, Roberto Schwarz publica “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, ensaio em que, como crítico excepcional que é, descobre aquilo que estava evidente a todo tempo, e, ainda assim, não podíamos ver: Dom Casmurro não representa – como por muito tempo se propagou – o refinamento sentimental supremo a que todos nós, brasileiros, devemos aspirar. A poesia do cavalheiro cético e requintado que toma a voz no romance de Machado segreda veneno; sua erudição, sua prosa elegante, camuflam a perversidade pura e simples da dominação. Protótipo da elite brasileira, o marido/acusador de Capitu representaria o obscurantismo; sua esposa, o espírito esclarecido, a ascensão de uma nova classe.

Atraso e modernização, portanto, entram em conflito. O final, como todos sabemos, é funesto: a “gaiola da autoridade patriarcal” se fecha sobre Capitolina; vence a reposição do atraso, o conservadorismo elegante de Bentinho.

Que uma prima-irmã de Capitu apareça em 2015 é algo sintomático. Passados mais de cem anos após a publicação do romance de Machado, continuam a vigorar as relações que engendram capitus, prudêncios, sinhás, fabinhos e quartinhos de empregada. O paternalismo e o nexo escravista sobrevivem, e não apenas como meros fantasmas.

O final de Que horas ela volta?, contudo, parece ser mais bem mais otimista que aquele de Dom Casmurro. Diferente de Capitu, Jéssica rejeita o casamento interclasses com sinhô Carlos (um casamento que apenas perpetuaria a dominação) e vai viver com a mãe na favela onde devem recomeçar a vida. Não se trata, no entanto, de um fim conformista, em que mãe e filha voltam para o lugar do qual – segundo a ideologia de tipos como dona Bárbara – nunca deveriam ter saído. Trata-se mais bem de um desfecho redentor que, repleto de dignidade, aponta para uma ascensão social que não se confunde com aquela – intitulada “ascensão da classe C” – da qual se vem fazendo alarde nos últimos anos.

Isso porque a escalada de Jéssica, da qual se ensaiam os primeiros passos no filme, não está fundamentada no consumo. Sua curiosidade, sua fome de conhecimento suplantam desejos mesquinhos de carros do ano. Neste contexto, a escolha pela carreira de arquiteta ganha força: Jéssica não escolhe uma profissão que apenas perpetuaria as relações retratadas no filme, mas sim um fazer que, subvertendo a experiência do espaço, pode engendrar profundas transformações.

Com duas faces, uma apontada para o passado, e outra para o futuro, Que horas ela volta? não se esgota na percepção das relações arcaicas que impregnam a atualidade brasileira. Filme militante, procura propor novos paradigmas para um Brasil que, entre trancos e barrancos, começa a se desenhar. A mensagem é clara: que os novos protagonistas não reproduzam o comportamento de uma elite esclerosada. A questão não está em ser ou não incluído na classe média, como querem alguns, mas em ultrapassar os costumes abjetos desta classe.

Não por acaso Que horas ela volta? termina com uma família composta por duas mulheres e um menino, filho de Jéssica. No Brasil mais justo de Anna Muylaert não há espaço para a “gaiola da autoridade patriarcal” que engole jéssicas e capitus.


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