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Céu Aberto


O primeiro evento político de que me recordo com algum detalhe, ainda criança, foi a morte de Tancredo Neves. Os rumores e a boataria que cercavam sua doença chegavam a um tal ponto de fantasia que se falou até que ele havia sido assassinado por um disparo de revólver! O momento era de apreensão generalizada. Um certo medo e uma certa incredulidade pairavam no ar e ninguém sabia exatamente o que dizer e o que pensar.

O documentário “Céu Aberto”, de João Batista de Andrade, realizado no calor dos acontecimentos, além de traçar um breve panorama da trajetória pública do político mineiro, joga luz sobre várias questões que cercaram sua morte.

João Batista opta por uma adesão moderada e discreta ao seu personagem principal, e, assim como ele, que era um conciliador nato, coaduna múltiplas vozes e abordagens na construção de seu discurso: são populares abordados nas ruas, intelectuais e políticos de ambos os espectros que procuram delinear, através de entrevistas dadas ao cineasta, um perfil humano e político daquele que poderia ter sido nosso primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar.

O autor consegue dar um tratamento criativo àquela realidade apreendendo com grande habilidade o estado de ânimo dos que acompanhavam o dia-a-dia da agonia de Tancredo, do simples mal-estar das pessoas ao histerismo religioso exacerbado.

As informações desencontradas e a ameaça de um golpe que supostamente seria liderado pelo então general Newton Cruz, desmentido por ele anos mais tarde, ameaçavam a abertura democrática e colocavam em xeque o futuro da "nova república". Daí o medo e a desconfiança generalizada.

Duas sequências chamam a atenção no filme por sua excepcionalidade. Na primeira delas, João Batista entra dentro do campo visual e aborda os transeuntes nas ruas de São Paulo interrompendo suas trajetórias e "forçando-os" a falar. Essa atitude do cineasta torna-o agente da situação, ator de seu próprio filme que, sem qualquer constrangimento, intervém diretamente no real. No desdobramento dessa abordagem uma aglomeração de populares é formada e eles passam a opinar (ou especular) a respeito do que teria acontecido a Tancredo Neves.

A outra sequência marcante do documentário se dá na casa do general da reserva Newton Cruz. Sua significação está contaminada por uma sequência anterior na qual o mesmo general, numa entrevista coletiva dada a imprensa, é visto agredindo verbalmente um dos repórteres, num gesto de extrema arrogância e autoritarismo. Na cena da casa, espaço privado, sem uniforme militar, inserido num ambiente familiar com os netos e a filha (ou nora), toda sua arrogância se dilui e o que vemos é um sujeito pacífico e inofensivo. A câmera afasta-se e aproxima-se dele sem receio, bem diferente daquela câmera cautelosa da entrevista coletiva refém de uma situação pública tensa cercada de militares. Aqui o cineasta intervém outra vez no real surgindo novamente no campo visual e ficando frente a frente com Newton Cruz. Essa realidade gerada pelo encontro entre os dois produz um efeito de quase ficcionalidade, numa espécie de teatro encenado clandestinamente, um jogo em que, de um lado, está o general da reserva fingindo que não representa para a câmera, com a promessa de se manter sempre espontâneo, e, do outro, o realizador fazendo vista grossa para sua representação. Um tentando enganar o outro. Um cinema de grampo no qual o cineasta fica esperando que o personagem se traia para revelar algo subterrâneo de sua personalidade dentro do jogo teatral.

Sem nenhuma intenção de criar simpatia por ele, o confronto entre as duas cenas, o teatro encenado no espaço público e aquele encenado no espaço privado, acaba gerando no espectador um sentimento de que o tempo dos militares está extinto, e que, pelo menos por enquanto, não há mais o que temer. A pergunta de João Batista: "general, o tempo dos militares acabou?" sobre a imagem dele brincando com os netos é, sem dúvida, a maior provocação de “Céu Aberto”.

Finalmente, o filme é abrangente também no que diz respeito a sua pesquisa histórica. Há em sua estrutura uma montagem que intercala passado e presente de modo a evidenciar a intensa participação de Tancredo na vida pública nacional. Atuando como ministro no governo de Getúlio Vargas, presidente do Banco do Brasil durante o governo de Juscelino Kubistschek e primeiro ministro no governo João Goulart, ele foi sempre um moderador, mediando divergências às vezes irreconciliáveis.

Como todo bom documentário, “Céu Aberto” consegue transcender sua especificidade temática e temporal e pode ser visto, vários anos depois, como um filme que ainda mantém muito de seu frescor. O transe generalizado que estamos vivendo nos dias de hoje, inclusive com muitos dos atores políticos daquele momento (1985), é prova peremptória da sua atualidade.


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