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Colateral, Taxi Driver e O Gosto de Cereja


A segunda passageira do taxista Max é uma advogada chamada Annie Farrel. Ela entra no automóvel e diz não só para onde quer ser levada como também as ruas e avenidas que o motorista deve tomar para chegar lá mais rápido. Max, bastante seguro de si, contesta seu itinerário e sugere um outro ainda melhor, ainda mais rápido. Eles apostam e Max, claro, vence. Da entrada de Annie no táxi até sua saída, o trajeto foi realizado quase todo em linha reta, muito fluido e suave, sem paradas, por avenidas amplas e centrais bastante movimentadas e cercadas pela majestosa e excessivamente iluminada cidade de Los Angeles. Eles se encantam um com o outro e Annie acaba deixando um cartão com seu telefone para Max, abrindo uma porta para um reencontro. Esse é o início de “Colateral”, de Michael Mann.

Já o Sr. Badii, do filme “O Gosto de Cereja”, de Abbas Kiarostami, no seu intento de encontrar alguém que possa cumprir a risca os rituais fúnebres necessários após seu suicídio, nunca dirige seu carro por vias principais e em linha reta. Sua busca, ao contrário, se dá por estradas vicinais, com paradas, circunvoluções e retrocessos. Diferente do taxista de “Colateral”, Sr. Badii duvida. Ele não tem a mesma certeza. E embora conheça o caminho até a árvore ao lado da qual quer ser enterrado, ele, ainda assim, precisa da ajuda de outros para realizar seu desejo.

O passageiro seguinte de Max é o enigmático Vincent. Inicialmente, ele se apresenta como um negociante imobiliário e acaba convencendo o motorista, depois de oferecer-lhe seiscentos dólares, a levá-lo para todos os seus compromissos daquela noite. Vincent entra no prédio de seu suposto primeiro cliente e instantes depois algo inesperado acontece: um corpo com três tiros despenca do terceiro andar e cai violentamente sobre o táxi, assustando Max e o espectador.

Descobrimos então qual é efetivamente o trabalho de Vincent que, agora, improvisadamente, segue para seu próximo homicídio. Ele é um matador profissional que dá pouca importância para a vida humana e se parece muito com Travis, de “Taxi Driver”, de Martin Scorsese. Ambos, pois, tem a mesma aversão a sociedade, e ambos, assim como Sr. Badii, ainda que por motivos diferentes, têm inclinações suicidas.

Além do desejo de autodestruição dos personagens principais, o outro fator que aproxima os três filmes é o carro. Poderia se pensar, como propõe Jean-Claude Bernadet para os filmes do cineasta iraniano no seu livro “Caminhos de Kiarostami”, que há também nos dois filmes americanos uma estética do carro e uma poética do deslocamento. Bernadet transcreve um trecho de uma entrevista dada por Kiarostami na qual o cineasta diz: "O carro é simplesmente uma bela ideia. Não se trata apenas de um meio de locomoção que nos leva de um lugar para o outro, é também uma casinha, um habitáculo muito íntimo com uma grande janela cuja vista não para de mudar (...) a janela do carro é grande e, além disso, como numa tela em cinemascope, reflete o movimento". No caso de “Colateral” e “Taxi Driver”, o táxi também é um espaço que está entre o público e o privado. Numa tensão permanente entre a intimidade do espaço da casa, que permite algum grau de confidência e cumplicidade, contrastado com o espaço público da rua, da impessoalidade e do indivíduo. No carro do Sr. Badii os passageiros sentam-se ao lado do motorista porque desde o início há um desejo de diálogo, prevalecendo o espaço da casa. Nos táxis os passageiros sentam-se atrás justamente para evitá-lo ou reduzi-lo ao essencial.

Travis é alguém que vê o mundo desde o interior de seu táxi, sua casinha, que o protege e o isola ao mesmo tempo que o aproxima de todos aqueles a que tem aversão, a "sujeira" e a "escória" da cidade. Estas últimas, aliás, muito intensamente ligadas à narrativa tanto de “Taxi Driver” quanto de “Colateral”, criando certa atmosfera e ampliando a solidão dos personagens. A partir do momento em que Travis resolve dar um rumo novo a sua vida e limpar aquela "sujeira", ele passa a ser tão eficaz e preciso no manejo das armas quanto Vincent.

Poderia se fazer, então, um paralelo entre a eficácia e a precisão dos dois personagens em manejar armas e matar pessoas e a predominância dos trajetos retilíneos dos táxis pelas avenidas das cidades, havendo assim uma harmonia entre ambas as coisas. O trajeto em linha reta dos táxis nos dois filmes americanos (mais explícito em “Colateral”) contrastado com o trajeto predominantemente circular dos carros nos filmes de Kiarostami traduz uma estrutura narrativa sólida e fechada, segura de si e, pode se dizer, tão autoritária quanto Vincent e Travis, prevalecendo o alcance dos objetivos e a excelência dos resultados e não o movimento até eles. Uma estética, portanto, que costuma não privilegiar o papel do espectador. Não havendo, pois, nos dois filmes americanos a possibilidade de que os espectadores possam completá-los e vir a contribuir com seu próprio imaginário. “Colateral”, neste sentido, é um filme sintomático.

Para Kiarostami, "todos os filmes deveriam ficar em aberto e fazer perguntas, deixando ao espectador a liberdade de construir sua própria visão, podendo intervir e preencher os vazios e as lacunas". O que fica nessa proposta de cinema não é, segundo Bernadet, a resposta a alguma indagação, a resolução de algum problema, mas o não-saber, a hipótese, a possibilidade e a dúvida. A certeza , nunca.

Deve-se notar, entretanto, a excepcional construção dos três personagens nos três filmes, pois a ausência de explicações e de qualquer análise psicológica mais profunda, tanto no que diz respeito à suposta homossexualidade do Sr. Badii quanto aos desvios de caráter de Travis e Vincent, canaliza toda a reflexão sobre o direito moral e até religioso dos personagens em matar os outros e a si próprio.

O final de “Colateral” nada mais é do que o confronto entre duas eficácias e certezas, a de Max, numa chave positiva, para proteger e salvar Annie - ele tira o táxi da sua trajetória retilínea fazendo-o girar em círculos sobre o asfalto -, e a de Vincent, num par de oposição simples e redutor entre o bem e o mal. Vincent acaba experimentando do seu próprio veneno e morre dentro do metrô da forma que mais temia, sem deixar marcas e sem ser notado, desaparecendo em linha reta no fim da madrugada.


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